terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Saúde Mental - Luta Antimanicomial, Reforma Psiquiátrica e CERSAMs

Giane Alves de Melo e Assis Cunha
Silmara Cristina Maciel


RESUMO: O referido artigo diz respeito à desospitalização e melhorias na qualidade de vida dos pacientes em saúde mental dos CERSAMs e discorre a respeito dos conceitos de Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial. Apresenta um breve histórico sobre a Luta Antimanicomial no mundo, no Brasil e em Belo Horizonte, além de mostrar os serviços substitutivos dohospital psiquiátrico. Descreve a jornada dos pacientes em saúde mental do hospício aos CERSAMs – Centros de Referência em Saúde Mental, destacando um tópico para explicar o funcionamento dos CERSAMs, seus fundamentos, seu surgimento, sua lógica, sua distribuição em Belo Horizonte, entre outros aspectos. E por fim, esse artigo trata de definir os termos: Rede de Saúde Mental e qualidade de vida.

Palavras-chaves: desospitalização, paciente, saúde mental, Luta Antimanicomial, Reforma Psiquiátrica, Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, CERSAM, psiquiatria, psicólogos, família, qualidade de vida, serviços substitutivos, Leis, manicômio.

Introdução

É mister antes de apresentar o conteúdo de Reforma Psiquiátrica e de Luta Antimanicomial, introduzir um breve relato da história da loucura.

Num primeiro momento, o poder religioso e a persuasão dos filósofos preponderavam sobre o parecer da medicina. Eram considerados loucos todos aqueles que apresentassem algum tipo de comportamento desviante dos padrões normais impostos pela sociedade. Como exemplo dessa barbárie é possível relacionar: alcoólatras, dependentes químicos, homossexuais, jovens mães solteiras, dentre outros julgados socialmente como desarazoados. A loucura era considerada um desatino (ausência de razão) e a forma de tratamento era por internação involuntária em manicômios que verdadeiramente eram como depósitos de humanos. Nestes locais as pessoas não eram dignificadas, não exerciam cidadania e entravam para nunca mais sair.

Num segundo momento, a loucura era aprisionada pelo saber médico e já era considerada como doença. Só o médico podia dizer se o paciente era ou não louco. Os pacientes eram tratados em Hospitais Psiquiátricos e tinham seus direitos de indivíduo livre, mas ainda eram submetidos a práticas bárbaras, tais como eletrochoques e "sossega-leões".

Num terceiro momento, houve um despertar dos trabalhadores em saúde mental que determinaram acabar com a instituição psiquiátrica e levar ao paciente uma forma mais humana de sobrevivência, como sujeito de direito, ou seja, como sujeito biopsicossocial, pois só assim seria possível ter saúde mental. O objetivo era criar novos dispositivos de tratamento para extinguir os manicômios e os hospitais psiquiátricos e assim estreitar os laços entre o paciente, a família e a sociedade. Os TSM (trabalhadores em Saúde Mental) pensaram no bem estar do paciente após a desinternação e sua preocupação foi além, pois em parceria com assistentes sociais buscaram também outros benefícios para o paciente, tais como: aposentadoria, moradia, reinserção à sociedade e ao seio familiar.

Muito já se conquistou na área da psiquiatria e em saúde mental de um modo geral, mas os TMS são incansáveis e a luta continua, pois ainda há muito a ser mudado, como veremos a seguir.

Conceito de Reforma Psiquiátrica

A Reforma Psiquiátrica é um Movimento Social dos Trabalhadores em Saúde Mental e não apenas de técnicos e administradores. Seu lema é "por uma sociedade sem manicômios".

A Reforma do Modelo de Assistência em Saúde Mental, conhecida como Reforma Psiquiátrica, propõe a reinserção social e a assistência integral ao paciente. Além disso, prevê que a internação em hospital seja o último recurso no tratamento de doenças mentais.

Segundo Paulo Amarante, 1994, desde o surgimento da psiquiatria como disciplina específica, se pensa e se fala em "reforma da Psiquiatria", porém é após a II Guerra Mundial que este propósito se intensifica e originam-se projetos mais delimitados de natureza técnica e administrativa de intervenção da psiquiatria, denominados de reformas psiquiátricas.

Pode-se dizer não de uma única reforma psiquiátrica, mas de reformas psiquiátricas. Na Inglaterra do pós-guerra (II Grande Guerra), surgiu como uma possível saída para a grave situação dos hospitais psiquiátricos a prática da psicoterapia grupal.

Na França, no início dos anos 50, nasceu a análise institucional francesa, buscando "tratar o doente pela instituição e tratar a instituição como um doente".

Nos E.U.A., inicia a psiquiatria preventiva ou comunitária, visando a prevenção do adoecer psíquico.

"na Itália, a quase 20 anos da imanação da lei da reforma psiquiátrica, finalmente o governo prevê o fechamento completo dos manicômios até o fim de 1996"(BASAGLIA, Franca, 1996).

"na Itália, uma lei proibiria, em 1978, novas internações em manicômios, determinava seu esvaziamento progressivo e definia a necessidade da criação de estruturas territoriais que respondessem à demanda, abolindo a ligação imediata e necessária entre a doença mental e a noção de periculosidade social. Atualmente, mesmo durante o tratamento, a pessoa conserva seus direitos e deveres civis"(BARROS, Denise Dias, 1994).

Em 13 de Maio de 1978 foi aprovada pelo Parlamento Italiano a Lei 180, posteriormente englobada na Lei 833 da Reforma Sanitária Nacional.

As transformações introduzidas pelas intervenções psiquiátricas nas cidades italianas inspiraram o movimento de reforma psiquiátrica e as inovações normativas provocadas pela aprovação da Lei 180, criaram campo de tensão nas relações entre psiquiatria e justiça.

As expressões de luta contra o manicômio no Brasil e em outros países do mundo seguem a evolução da experiência italiana como ponto de referência às propostasde mudança.

No Brasil no final da década de 1970, surge o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental – MTSM - que protagoniza os anseios e as iniciativaspela Reforma da Assistência Psiquiátrica Nacional.

No entender de Joel Birman, 1992, o Movimento pela Reforma Psiquiátrica expressa "uma maior maturidade teórica apolítica", a qual pode ser entendida como transformações em psiquiatria que vão, além da busca de soluções técnicas ou administrativas, até a remontagem de questões teóricas, políticas, culturais e sociais.

Para Franco Basaglia, 1996, no período de redemocratização, o Movimento Brasileiro abandonou sua especificidade de Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental para procurar tornar-se um Movimento Social pela Reforma Psiquiátrica com a estratégia de "uma sociedade sem manicômios".

Conceito de Luta Antimanicomial

A Luta Antimanicomial surgiu em 18 de Maio de 1987, no Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental em Bauru-SP e consiste no Movimento Nacional da Luta Antimanicomial que é muito mais amplo que a Reforma Psiquiátrica. É um Movimento social disseminado por todos os estados do Brasil. Tem como metas o fechamento dos manicômios do País e a promoção de uma cultura de tratamento, de convivência e de tolerância, no seio da Sociedade, para as pessoas em sofrimento psíquico.

Segundo Ana Marta Lobosque, 2001, a Luta Antimanicomial revela um modo político peculiar de organização da sociedade em prol de uma causa, a saber: uma sociedade sem manicômios. É uma luta da sociedade que não delega aos técnicos a gestão da convivência com a loucura. Esta luta é um movimento aberto, muito particularmente, aos principais envolvidos, ou seja, os próprios loucos.

Todo ano no dia 18 de Maio, comemora-se em todo País, com festejos de músicas, teatro, oficinas ao vivo, desfile-passeata, enfim. Com muita criatividade, médicos e loucos disfarçam-se de si mesmos e saem pelas ruas num alegre manifesto contra o modelo de tratamento adotado pelo hospital psiquiátrico.

O que Surgiu Primeiro, A Reforma Psiquiátrica ou a Luta Antimanicomial?

A reforma psiquiátrica surgiu primeiro na Itália em 1978 e foi disseminada em outros países, inclusive no Brasil. A Lei Brasileira nº 10.216 também conhecida como "Lei Paulo Delgado" e como "Lei da Reforma Psiquiátrica" foi promulgada em 06 de Abril de 2001, mas o Movimento já existia.

A Luta Antimanicomial no Brasil surgiu em 18 de Maio de 1987 num Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental em Bauru-SP, mas também já vinha sendo projetada há algum tempo.

Luta Antimanicomial no Brasil, no Mundo e em Belo Horizonte.

Logo após a Segunda Guerra Mundial, surge na Itália o Movimento de Reforma Psiquiátrica chamado Psiquiatria Democrática, este movimento surgiu com as idéias de Franco Basaglia, um psiquiatra que pôs em prática uma proposta de atendimento no Hospital Psiquiátrico de Gorizia, que consistia em diminuir o número de internações nos manicômios e fazer a Sociedade aceitar o convívio com os doentes mentais. Transferido para dirigir o Hospital de Triestre, Basaglia repetiu a experiênciade superação do modelo asilar-manicomial que tinha dado certo em Goriziae os ideais do MOVIMENTO DE DESOSPITALIZAÇÃO. Esta lógica de tratamento vira referência na Itália, Inglaterra, Estados Unidos, França e vários outros países do mundo como modelo para o tratamento da doença mental.

Nos últimos anos da década de 1970 no Brasil, durante o contexto de abertura do Regime Militar surgemas primeiras manifestações da luta antinamicomial no setor de saúde, seguindo uma trajetória de muitos outros movimentos sociais doPaís.Em 1978 forma-se no Brasil, no estado de São Paulo o MOVIMENTO DOS TRABALHADORES EM SAÚDE MENTAL (MTSM) que passa a protagonizar os anseios e as iniciativas da REFORMA PSIQUIÁTRICA NACIONAL. O MTSM buscava uma transformação genérica da assistência psiquiátrica.As denúnciasfeitas mostravam a violação aos direitos humanos dos internados, reivindicavam a redução de número excessivo de consultas por turno de trabalho, faziam críticas a cronificação do manicômio e ao uso do eletrochoque por parte da equipe médica, enfim, os trabalhadores de saúde mental demandavam melhores condições de assistência à população e ahumanização dos serviços.Comose tratava de uma denúncia escrita, registrada em documento oficial, a resposta foi imediata e violenta, como era comum naqueles tempos. Vários profissionais que lideravam o movimento e muitos outros que o apoiavam foram demitidos dos hospitais.

Dez anos mais tarde o MTSM transformou-se no Movimentode Luta Antimanicomial, ainda hoje o mais importante movimento social pela reforma psiquiátrica e pela extinção dos manicômios que se tem notícia no Brasil.

A realidadenos manicômios do estado de São Paulo, o onde deu inicio ao movimento da LUTA ANTIMANICOMIAL como já foi mencionada no texto acima era igualmente observada nos hospitais de várias cidades dos Estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais. Esse modelo era praticamente universal,predominantemente asilar e manicomial, com milhares de pessoas abandonadas em grandes instituições financiadas pelo poder público.

O ano de 1978 foi marcado pela chegada ao Brasil de Franco Basaglia, psiquiatra italiano que fundou o Movimento da Psiquiatria Democrática e liderou as mais importantes experiências de superação do modelo asilar-manicomial em Gorizia e Trieste como já vistoanteriormente nesse artigo. Ele foi o primeiro a colocar em prática a extinção dos manicômios, criando uma nova rede de serviços e estratégias para lidar com as pessoas em sofrimento mental. A experiência de Basaglia serviu de inspiração para a Lei 180, aprovada na Itália em 13 de maio de 1978, que determinou a extinção dos manicômios e a substituição do modelo psiquiátrico por outras modalidades de cuidado e assistência. A "Lei Basaglia", como foi chamada, é a única no gênero em todo o mundo. A vinda de Basaglia ao Brasil foi considerada pelos militantes da Luta como a "sorte grande". Em uma das suas visitas o psiquiatra, conheceu o Hospital Colônia de Barbacena, localizado na cidade de Barbacena - Minas Gerais, um dos mais cruéis manicômios brasileiros.Basaglia comparou a colônia de alienados, a um campo de concentração, reforçando denúncias de maus-tratos e violência que já haviam sido feitas. A mídia deu extrema importância à visita de Basaglia ao Brasil, e acabou produzindo uma forte e decisiva influência na trajetória da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Nesta mesma época o cineasta Helvécio Ratton lança seu importante documentário "Além da Razão" que retrata a experiência da internação psiquiátricade Barbacena. Esse trabalho desde então irá tornar-se referência indispensável em investigações acerca da Luta no Brasil.

Durante a luta antimanicomial o Hospital Psiquiátrico de Barbacena foi reformado,tornado-se Centro de Atendimento ao Portador de Doença Mental, agora commais humanização em seus atendimentos e com vários recursos que valorizam as potencialidades e a capacidade de criação dospacientes,que antes ficavam jogados e esquecidos pelos cantos do Hospital.

A Luta Antimanicomial no Brasil começou de fato em 1987, na cidade de São Paulo. A iniciativa foi do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, pois os trabalhadores vivenciavam situações análogas às de "campos de concentração" conforme as denúncias feita por Basaglia em sua vinda ao Brasil. Importante destacar que o III Congresso Mineiro de Psiquiatria realizado em 1979, na capital mineira,em parceria com o MTSM, propôsa implantação de serviços "alternativos" de assistência psiquiátricaque substituíssem os manicômios.

O ano de 1987 se destaca pela realização de dois eventos importantes: a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Congresso Nacional do MTSM realizados em Bauru/SP). Este segundo evento vai registrar a presença de Associações de Usuários e Familiares, como a "Loucos pela Vida" de São Paulo e a Sociedade de Serviços Gerais para a Integração Social pelo Trabalho (SOSINTRA) do Rio de Janeiro, entre outras. Com a participação de novas associações, passa a se constituir em um movimento mais amplo, na medida em que não apenas trabalhadores, mas outros atores se incorporam à luta pela transformação das políticas e práticas psiquiátricas. Em 1989 ocorreu em Santos uma série de mortes em uma clínica psiquiátrica particular, logo depois a Prefeitura decide intervir, iniciando um trabalho revolucionário semelhante àquele de Franco Basaglia na Itália. No lugar da clínica psiquiátrica foram implantadas nessa cidade novas modalidades de serviços paralidar com pessoas em sofrimento psíquico, como os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) de permanência-diae/ou abertos 24 horas.

Ainda em 1989, foi apresentado o projeto de lei nº 3.657/89, do deputado Paulo Delgado (PT/MG). Esse documento visava a regulamentação dos direitos do doente mental em relação ao seu tratamento e indicava-se a extinção progressiva dos manicômios de esferas pública e privada, e sua substituição por outros "recursos não manicomiais de atendimento" (Delgado, 1989). Podemos notar que sua justificativa fazia menção explícita à Lei italiana nº180. Hoje o Brasil conta com vários serviços de saúde mental abertos, regionalizados, com equipes multidisciplinares, envolvendo vários setores sociais e não apenas o setor da saúde.

Em 1985, o Estado de Minas Gerais criou o Programa de Saúde Mental, com a constituição de equipes atuando em unidades básicas de saúde, visando estabelecer fluxo para o recebimento de pacientes advindos dos hospitais psiquiátricos e oferecer um tratamento mais humano, que considerasse a singularidade de cada paciente.

A partir dos anos 1990, o Ministério da Saúde vem publicando portarias que estabelecem normas de funcionamento específicas para os Serviços Substitutivos de Saúde Mental, os chamados CAPS/NAPS – Centros/Núcleos de Atenção Psicossocial, dentre outros.

Hoje o País já dispõemde várias Leis Estaduais e Federais que versam sobre o redirecionamento da assistência em saúde mental, isto é, zelam pela extinção progressiva dos hospitais psiquiátricos substituindo-os por outras formas de tratamento e a garantindo os direitos humanos dos portadores de sofrimento mental.

Por fim,dentro do espaçodos seis anos compreendidos entre 1987 e 1993 várias articulações foram realizadas, diversos núcleos do Movimento foram se constituindo e, no ano de 1993, consolidando o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, foi realizado o I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial em Salvador/BA (neste encontro, é elaborada a Carta Sobre os Direitos dos Usuários e Familiares dos Serviços de Saúde Mental). O eixo principal das discussões desse último evento girava em torno da organização do Movimento.

O que são os Serviços Substitutivos ou os Dispositivos Substitutivos do Manicômio.

Os dispositivos substitutivos constituem uma rede de serviços que se origina da política antimanicomial para substituir os manicômios, lutando contra a exclusão dos portadores de sofrimento mental e contra as más condições de atendimento aos pacientes de saúde mental. Os hospícios insistiram em uma forma de trabalhar que não se comprometia com os pacientes e eram claros e visíveis seus problemas com os de superlotação, falta de preparo dos funcionários e o grande número de mortes de pacientes, o que personalidades como Basaglia, como já foi dito, mas também Michel Foucault, fizeram ver.

A Função Destes Serviços e o que Foi Criado Para Atender o Problema Específico Dentro de Uma Política Específica na Cidade.

O papel dos serviços substitutivos é acabar com os manicômios num processo gradativo e dedicar cuidados aos pacientes, com mais humanidade, tratando a saúde e cidadania como um direito de todos os pacientes portadores de sofrimento mental. Esse direito está expresso na Lei Estadual nº 11.802, "Lei Carlão", tal lei:

"dispõe sobre a promoção de saúde e reintegração social do portador de sofrimento mental e determina a implantação de ações e serviços de saúde mental substitutivos aos hospitais psiquiátricos, bem como a extinção progressiva desses; regulamenta as internações, especialmente a involuntária e dá outras providências."

Igualmente versa sobre o tratamento humanizado ofertado ao paciente de saúde mental a Lei Federal nº 10.216/01, conhecida como o "antigo projeto de lei Paulo Delgado" e que "Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e sobre o modelo assistencial em saúde mental".

Como seria essa "nova" forma de atuar e cuidar desses pacientes? A Coordenação de Saúde Mental da Secretaria de Saúde do Município de Belo Horizonte elaborou no ano de 2006 um documento intitulado "Humaniza SUS- Política de Saúde Mental de Belo Horizonte" no qual está descrita:

"a forma de abordagem pautada pela busca do consentimento e da participação do paciente e seus familiares em seu tratamento, da garantia de seu pleno acesso aos serviços públicos, pela afirmação de seus direitos, pela sua politização como protagonistas do controle social".

A Rede de Saúde Mental em Belo Horizonte possui Centros de Referência em Saúde Mental (CERSAMs), para atendimento intensivo das urgências, em suas modalidades diurna e noturna; Centros de Convivência, nos quais os pacientes participam de atividades e passeios diversos; Centros de saúde, compostos por equipes de saúde mental que atuam em parceria com as equipes de saúde da família e programas que contribuem com o processo de desinstitucionalização do paciente de saúde mental, pois, tem o objetivo de viabilizar a saída dos pacientes dos hospitais e seu retorno para suas casas, para junto de sua família.

Outro serviço de assistência ao paciente de saúde mental é o PAI-PJ – Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário - criado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, que tem como objetivo fundante prestar assistência aos ditos "loucos infratores", ou seja, aos pacientes de saúde mental que cometeram delitos, ajudando os juízes a definir as medidas a serem adotadas na condução daquele processo e a estabelecer diretrizes de acompanhamento aos pacientes nessa trajetória visando, em última instância, sua reinserção na sociedade.

A implantação de dispositivos substitutivos exige organização política e prática extrema. Concomitantemente ao fechamento dos hospitais psiquiátricos deverá haver a criação desses serviços, para que não falte assistência aos portadores de sofrimento mental como ocorreu em alguns municípios de São Paulo.

A Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo fechou alguns hospitais psiquiátricos regionais sem que antes houvesse promovido uma articulação intermunicípios para montar os serviços que iriam receber os pacientes, ocasionando uma crise no processo almejado de desospitalização.

Os CERSAMs

O objetivo deste tópico é apresentar de forma bastante detalhada o que são os CERSAMs – Centros de Referência em Saúde Mental, sua origem, quem foram seus principais colaboradores, o porquê da criação de um novo dispositivo de atendimento em saúde mental, de Belo Horizonte e o caminho percorrido pelo paciente de saúde mental até chegar ao CERSAM.

A prática efetiva de tal serviço mostra que é possível resgatar a saúde, o respeito e a dignidade do paciente de saúdemental por meio de técnicas e métodos que irão valorizar sua subjetividade e ajudar a reinseri-lo à sociedade, considerando sua trajetória históricae clínica.

O que é o CERSAM


É um dos principais dispositivos de atendimento em saúde mental construído segundo a lógica de uma alternativa ao hospital psiquiátrico. O CERSAM representa, em verdade, uma variação que ganha o NAPS – Núcleo de Atenção Psicossocial – na cidade de Belo Horizonte. Os NAPS tiveram sua origem na cidade de Santos - SP, constituindo a primeira modalidade de atenção à saúde mental de acordo com a lógica assegurada pela Luta Antimanicomial.

"Em Belo Horizonte o NAPS é chamado de CERSAM – Centro de Referência em Saúde Mental." (LOBOSQUE:1998:50). O primeiro a ser montado em Belo Horizonte foi o CERSAM – Barreiro no ano de 1993.A Rede de Saúde Mental em BH é composta por sete CERSAMs, distribuídos nas regionais da metrópole, portanto, existem as seguintes unidades: Barreiro, Noroeste, Leste, Pampulha, Nordeste, Venda Nova e Oeste.

Os CERSAMs têm jornada de doze horas, das 7h às 19h, todos os dias da semana, inclusive feriados. Atualmente as unidades Pampulha e Leste funcionam 24 horas. Cada um possui 06 leitos, atendendo às necessidades de pernoite das demais regionais (dos demais centros) da capital mineira e, eventualmente, de regiões de seu entorno.

O CERSAM tem como proposta o atendimento de urgências psíquicas, bem como o acompanhamento de pacientes de saúde mental em crise, ou seja, psicóticos e neuróticos graves, egressos ou não do sistema hospitalar tradicional.

Suas equipes de profissionais são formadas, em geral, por psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, assistentes sociais e psiquiatras. As pessoas que chegam às unidades são atendidas prontamente por um de seus profissionais de plantão. Dois técnicos são designados como referência a cada caso, sendo um dos técnicos, um médico psiquiatra e um segundo técnico ocupa-se, principalmente da escuta ao paciente. (Independentemente do tipo de encaminhamento que o paciente recebeu , que pode também) Para cada paciente é elaborado um plano de tratamento específico. As modalidades de uso da Instituição são diversas. Há pacientes inscritos na permanência-dia, isto é, permanecem todo o dia ou parte dele no CERSAM e retornam para seus lares no fim da tarde. A freqüência dessa permanência é bastante variável. Com a estabilização do quadro do paciente, juntamente a manifestação de seu interesse por deixar de freqüentar cotidianamente o Serviço e, enfim, com o aval da equipe, os pacientes em permanência-dia poderão passar ao regime ambulatorial. Nesse caso, o usuário irá ao CERSAM na periodicidade definida pelos profissionais de sua referência, tanto para busca de medicamento, quanto para o atendimento clínico. O profissional que faz o primeiro atendimento, normalmente, passam a ser os responsáveis pela condução do caso deste paciente. Não somente o usuário, mas também sua família e a própria Instituição terão este técnico como referência em tudo o que disser respeito ao paciente, desde a elaboração do plano de tratamento até a sua alta do Serviço.

Conforme explicitado anteriormente, são profissionais de áreas diferentes que trabalham no CERSAM, porém, todos dão atendimentos aos pacientes, não se prendendo exclusivamente à sua formação, ou seja, não se restringem a fazerintervenções específicas, pré-determinadas pela formação obtida. A medicação fica a cargo do psiquiatra, o que não significa que este deva se limitar ao ato de prescrição medicamentoso. A habilidade destaca e imprescindível a toda equipe é a escuta clínica. Há também profissionais que propõem oficinas de arte como via possível de resgate de auto-estima. Em alguns casos, além da atividade ocupacional, pode ocorrer o aprendizado de um ofício, como meio de integração do paciente ao mercado de trabalho. Além disso, para certos pacientes, a arte funciona como possibilidade de reconstruções/resignificações de ordem psíquica.

A construção desse principal dispositivo da Rede de Saúde Mental de Belo Horizonte se fundamentou nos princípios eleitos pelos Movimentos de Luta Antimanicomial de todo o ocidente. Os TSM mineiros foram os principais colaboradores para a humanização dos serviços de atenção à saúde mental nesta cidade. Engajados com a Luta Antimanicomial viabilizaram a formação da rede municipal de Saúde Mental.

"no Brasil, a ótica da família como provedora de cuidado é estuda por Vasconcelos (1992), no bojo do processo de Reforma Psiquiátrica que busca descentralizar a assistência hospitalar/medicocêntrico e questiona sua prática de segregação pelo "isolamento terapêutico", que limita o tratamento à interação integral e à medicação. A reforma direciona o paciente para o cuidado integral em serviços abertos, comunitários, que preservam os vínculos sociais e os direitos de cidadania".

Existem formas humanizadas de tratar, lidar e prestar assistência ao paciente, e o CERSAM é um grande e expressivo operador dessa humanização. Por ser um trabalho tão importante, deveriam haver mais unidades na Capital, além disso, seria necessária uma ampla divulgação por parte dos Postos de Saúde, através dos agentes de saúde que lidam diretamente com a população assistida, indicando onde e como o paciente de saúde mental poderá ser atendido.

Antes da criação dos CERSAMs, havia um abandono por parte das famílias dos pacientes de saúde mental. Muitas famílias despreparadas, ou mesmo negligentes para lidar com tal situação desconfortável, aliviavam (no sentido de tornar mais leve) seu fardo nos manicômios. Os pacientes eram praticamente largados nos hospitais psiquiátricos, que por sua vez não estavam preparados para dar um atendimento decente aos pacientes.

Hoje esta realidade mudou, pois os serviços substitutivos dos manicômios humanizaram o tratamento dos portadores de sofrimento emocional e da mesma forma diminuíram os sofrimentos das famílias envolvidas, orientando, acompanhando e objetivando um tratamento mais humanizado. Assim, tanto o paciente quanto a família encontraram um apoio eficiente para vencerem, ou minimizarem o sofrimento.
Qualidade de Vida

Segundo a Organização Mundial de Saúde – OMS – qualidade de vida é definida como a percepção do indivíduo sobre a sua posição na vida, no contexto da cultura e dos sistemas de valores nos quais ele vive e, em relação a seus objetivos, expectativas, padrões e preocupações.

Num contexto mais específico podemos citar dois autores que fizeram considerações relevantes com relação à definição de qualidade de vida relacionada à saúde.

"é o valor atribuído à duração da vida, modificado pelos prejuízos, estados funcionais e oportunidades sociais que são influenciados por doenças, dano, tratamento ou política de saúde".(PATRICK e ERICKSON – 1993, apud Ebrahim p. 1384)

"o conceito de qualidade de vida compreende uma série de variáveis, tais como: a satisfação adequada das necessidades biológicas e a conservação de seu equilíbrio (saúde), a manutenção de um ambiente propício à segurança pessoal, a possibilidade de desenvolvimento cultural, e, em último lugar, o ambiente social que propicia a comunicação entre os seres humanos, como base da estabilidade psicológica e da criatividade".(Maya, 1984, PÁG.18)

Tantos outros autores na literatura destacam dois aspectos relevantes do conceito de qualidade de vida: a subjetividade e a multidimensionalidade. Referente à subjetividade trata-se de considerar a percepção da pessoa sobre o seu estado de saúde e sobre aspectos não médicos do seu contexto de vida. Quanto a multidimensionalidade refere-se ao reconhecimento de que o construto é composto por diferentes dimensões.

Todos os CERSAMs trabalham pela via da referência, ou seja, o técnico é responsável por determinados pacientes no sentido de ouvi-los, tornando-se referência para aquele paciente, independente de sua formação. Há também determinados trabalhos que são realizados por outros profissionais da área, tais como aplicar vacinas, dar os medicamentos prescritos etc.

O objetivo da prática é fazer com que o paciente tenha um técnico como referência, para que não seja necessário ouvir várias pessoas dando as mesmas orientações e para acompanhá-lo no tratamento propriamente dito. Assim, o trabalho dos técnicos é basicamente o mesmo: atender ao paciente e tornar-se referência para ele, responsabilizando-se por todo seu processo terapêutico.

Os técnicos de referência atendem basicamente ao serviço de urgência, através dos plantões ao sujeito que está em crise. O paciente pode ser levado por parentes, pela polícia, encaminhados por hospitais, por vizinhos e há casos de ir por conta própria. Os técnicos fazem ainda o serviço ambulatorial para casos de pequenos curativos ou medicação. Trabalham com o regime de permanência dia (PD), onde o sujeito pode ir uma vez por semana, de segunda a sexta-feira, ou em dias alternados. Diversas atividades são desenvolvidas, com o intuito de auxiliar no tratamento dos pacientes em surto, onde o convívio com outras pode estar comprometido por um período de tempo.

São oferecidas atividades como: oficinas de terapeutas ocupacionais, reuniões com outros usuários do serviço PD, alimentação, banho, medicação, dentre outras.

No CERSAM não há internação, trabalha-se em regime ambulatorial, onde o paciente está se estabilizando, mas ainda não pode ser encaminhado para dar continuidade em seu tratamento no posto de saúde. O mais importante nesta modalidade de serviço substitutivo prestado é o tipo de atendimento proporcionado ao paciente, que objetiva a diminuição do sofrimento e, sobretudo, a reinserção ao convívio social, resgatando sua cidadania e tornando-o um sujeito emancipado. Existe também o sistema de pernoite, para os casos em que o paciente estando muito agitado, sem condições de dormir em casa, pode pernoitar no CERSAM.

Considerações Finais

O trabalho proposto através da prática investigativa sobre políticas setoriais, permite explorar de forma objetiva, os diversos campos da psicologia e principalmente o contexto das políticas públicas e sociais nesses campos.

O "novo lugar da psicologia" apresenta demandas diversificadas, principalmente ao se tratar do campo da saúde.

O conceito de políticas públicas perpassa pelo entendimento de que os homens são diferentes entre si, porém, para sua sobrevivência é imprescindível que haja uma interação entre estes. No entanto, tal interação promove um conflito em relação aos interesses públicos e diferenças individuais com as necessidades da vida em sociedade, ou seja, os interesses públicos. A sociedade tende a excluir as diferenças ao invés de conviver com estas, buscam padronizar e/ou enquadrá-las em um parâmetro pré-estabelecido pela sociedade, nomeando está ação como "inclusiva". Porém, estas ações não visam à inclusão das diferenças, mas sim representam um mecanismo de controle social que manipula todo um sistema com o intuito de generalizar comportamentos e interesses individuais.

Através da prática investigativa pode-se observar que o CERSAM, projeto de Saúde Mental da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, ao contrário de outras políticas ditas inclusivas, realmente busca promover a qualidade de vida e reinserção social dos portadores de sofrimento mental, a partir do reconhecimento das diferenças individuais e na busca pela convivência entres estas. Através dessa concepção, deste novo olhar sobre a doença mental, ocorre uma mudança de paradigma em que é concedido ao sujeito o direito de expressar a sua subjetividade e exercer sua cidadania de forma digna.

O tratamento oferecido pelo CERSAM, além de ser uma política pública e social, obteve consideráveis avanços, proporcionando um tratamento amplo ao doente mental, em que este, desde sua chegada ao local, até o momento da saída, é tratado como ser humano. É um processo que envolve questões fundamentais para o contato com o doente, questões tais como a escuta (tanto do psicólogo, quanto de outros funcionários), alimentação, higiene, medicamentos, avaliação psiquiátrica, oficinas, reuniões familiares, entre outras atividades de interação. Os serviços prestados pelo CERSAM, substituem os hospitais psiquiátricos e permitem a reinserção dos pacientes na sociedade. Portanto, para atingir estes objetivos, outros programas são utilizados, criando assim, uma rede em que a prática do psicólogo, regulamentada pelo CRP, juntamente com os programas de "Saúde à família", "Volta pra casa" e outros, permite um tratamento adequado à situação de emergência e ambulatorial do doente mental.

O principal objetivo do CERSAM, em resumidas palavras da psicóloga entrevistada, consiste em fazer atendimento e se constituir referência.

Ao participar de forma efetiva e dinâmica de um processo tão complexo e ao mesmo tempo encantador, ninguém melhor do que o psicólogo para tratar as questões trazidas pelo doente mental. O psicólogo possui conhecimento e instrumentos de trabalho que permitem tratar um doente mental como um cidadão que reconhece seus direitos e deveres.

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SEIDL, Eliane M. Fleury e ZANNON, Célia M. L. da Costa. Qualidade de Vida e Saúde: Aspectos Conceituais e Metodológicos. Publicado em Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, MAR/ABR/2004.

Hipocondria de resultados

Revista médica acusa indústria farmacêutica de fabricar moléstias para vender remédio
Veículo: Folha de São Paulo
Seção: Mais!
Data: 23/04/2006
Estado: SP

A predileção incomum do público por soluções simples para problemas complexos, em especial os de saúde, é um segredo de polichinelo explorado há milênios pelos vendedores de ungüentos, garrafadas e emplastros milagrosos. Basta visitar o mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará, ou ouvir programas populares de rádio AM, para verificar que a tradição continua forte. Bem mais lucrativo que inventar remédios, porém, é fabricar doenças novas, com critérios de diagnóstico amplos e algum recém-desenvolvido medicamento de uso contínuo. Dá para ganhar bilhões com pílulas como Prozac ou Viagra, os símbolos de uma época em que estar doente é pop.
A receptividade e o entusiasmo dos consumidores contemporâneos para com as novas moléstias parecem inesgotáveis. A boa e velha impotência masculina foi repaginada como disfunção erétil e até ganhou uma companheira, a disfunção sexual feminina. Todos ficaram momentaneamente convencidos de que seriam felizes para sempre, sob as bênçãos do sildenafil. A única ameaça viria talvez do transtorno disfórico pré-menstrual (a antiga TPM), mas contra ele se ergueu uma barragem de inibidores seletivos de recaptação de serotonina, as drogas da família do Prozac: fluoxetina, sertralina, paroxetina, fluvoxamina... É só escolher.
Outra ameaça para a paz no leito, não só a conjugal, ganhou o nome quase humorístico de SPI (síndrome das pernas inquietas). Milhões de pessoas descobriram que sua insônia vinha dos membros inferiores, e não da cabeça. Melhor ainda, que ela poderia ser tratada com um comprimido de ropinirol. Maravilha.
Nem a escola escapou do marketing que mantém as empresas farmacêuticas como um dos ramos mais rentáveis da indústria, ainda que sua capacidade de inovação -medida pelo número de novos princípios ativos aprovados para comercialização- esteja em queda contínua. Para a epidemia de TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) existe, felizmente, o metilfenidato, que professores, enfermeiros, médicos e até pais se alegram em ministrar a uma geração incontrolável. A nova moda, agora, é diagnosticar guris de até 2 anos de idade com transtorno bipolar (ex-PMD, psicose maníaco-depressiva, antes uma prerrogativa dos adultos) e tratá-los na base dos "estabilizadores de humor".
O dossiê exagera na demoni-zação da indústria farmacêu-tica, que não exerce um papel tão proe-minente assim na exageração de outras panacéias biomédicas
Essa tendência do mercado farmacológico para a massificação de moléstias preocupa um número cada vez maior de médicos e até de jornalistas, em geral coadjuvantes empenhados desse processo. Ele já foi chamado de medicalização da vida, mas hoje é conhecido de maneira mais pejorativa como "disease-mongering" (algo como "apregoar doenças", aqui traduzido por "fabricação de doenças"). Há duas semanas, ganhou mais visibilidade com uma coleção de ensaios publicada no periódico científico de acesso aberto "PloS Medicine" (medicine.plosjournals.org), três dezenas de páginas de ataque frontal às táticas de vendas das empresas farmacêuticas e aos médicos e jornalistas que se prestam a implementá-las.
O termo "disease-monger" foi criado em 1992 por Lynn Payer, relembra Leonore Tiefer, da Universidade de Nova York, em seu artigo para o dossiê da "PloS Medicine". Payer também listou os dez mandamentos para a fabricação bem-sucedida de uma nova doença:
1. Tomar uma função normal e insinuar que há algo de errado com ela e que precisa ser tratada;
2. Encontrar sofrimento onde ele não necessariamente existe;
3. Definir uma parcela tão grande quanto possível da população afetada pela "doença";
4. Definir a condição como uma moléstia de deficiência ou como um desequilíbrio hormonal;
5. Encontrar os médicos certos;
6. Enquadrar as questões de maneira muito particular;
7. Ser seletivo no uso de estatísticas para exagerar os benefícios do tratamento disponibilizado;
8. Eleger os objetivos errados;
9. Promover a tecnologia como magia sem riscos;
10. Tomar um sintoma comum, que possa significar qualquer coisa, e fazê-lo parecer um sinal de alguma doença séria.
O ponto forte do dossiê da "PloS Medicine", editado pelos australianos Ray Moynihan (jornalista, autor do livro "Selling Sickness", ou "Vendendo Doença") e David Henry (farmacologista clínico, fundador da página de internet Media Doctor, www.mediadoctor.org.au), é não poupar a imprensa como co-autora dessa obra de falsificação em massa. O ponto fraco é algum excesso na demonização da indústria farmacêutica, que não exerce um papel tão proeminente assim na exageração de outras panacéias biomédicas, como a genômica e a pesquisa com células-tronco.
A "big pharma", afinal, só vende o que nos dispomos a comprar, como lembrou Ben Goldacre, médico e autor do popular blog britânico Bad Science (má ciência): "Somos todos participantes desse jogo. Fingir que a medicalização é algo imposto a nós -por malvadas e poderosas influências externas- só enaltece um sentimento perigoso de passividade", ressaltou Goldacre.


ABP . Associação Brasileira de Psiquiatria
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A Ressaca do Prozac e os Milagres da Fala


CONTARDO CALLIGARIS

Contardo Calligaris é psicanalista e autor de "Hello Brasil" (editora Escuta).

Nos últimos dois anos tivemos direito à moda do Prozac. Jornalistas, escritores e psiquiatras -em concerto com o dr. Kramer, profeta da dita droga- vieram nos dizer que a felicidade estava ao alcance de qualquer um que pudesse tomar Prozac com regularidade. Alterar os níveis da sorotonina no cérebro era a panacéia.

Foi quase impossível colocar um pouco de ordem na agitação de bandeiras que se alastrou desde então. Vimos pensadores questionarem as psicoterapias, pois seria a química, e não a palavra, o que comanda o cérebro. E vimos outros atacarem os remédios, como se seu uso contestasse alguma dignidade humana básica.

Em suma, reagiu-se como se psicoterapias e biopsiquiatria não operassem em última instância sobre o mesmo objeto: o cérebro. Felizmente, os profissionais mais sérios não pararam de trabalhar em conjunto, quando necessário.

De fato ninguém duvidava, nem duvida, que alterar quimicamente as funções cerebrais seja possível e oportuno em uma série de casos. Mas não é preciso por isso confundir a cozinha com a ciência: se está provado que Prozac & Cia. Alteram o nível da sorotonina, só conhecemos por via empírica e incerta quais resultados isso implica no estado de espírito do paciente.

Isso apareceu, por exemplo, quando psiquiatras foram convocados como experts pela defesa de um sujeito original que colocou fogo no metrô de Nova York. Eles afirmaram que o coquetel de dois antidepressivos (um dos quais o Prozac) e um antibiótico esteve na origem da incapacidade de entendimento do criminoso durante toda a sua laboriosa premeditação. Mas não nos tinham dito que os efeitos do Prozac eram "cientificamente" conhecidos?

Na verdade só era e é cientificamente certo que o Prozac tem efeitos químicos definidos -o que é ótimo. Agora, quais efeitos psíquicos correspondem a essa intervenção química, já é outra história, da qual é possível indicar algumas tendências (o Prozac é um antidepressivo), mas nada mais preciso.

De fato, são tantos histórias quanto os pacientes, pois as variáveis que entram em jogo dependem da singularidade de cada um -e elas não são apenas os remédios que o paciente absorve. Há também e sobretudo a complexidade de sua história, de suas memórias e de seu estado de espírito. Este, aliás, pode ser apresentado como um equilíbrio químico singular, mas incalculável, demasiado complexo. Por isso não são inteiramente previsíveis as suas reações a uma intervenção -seja ela química ou não.

Na mesma linha, um novo tema está ocupando a imprensa americana ("New York Times", de 15/2/96, e "Newsweek", de 26/2/96). Trata-se de uma experiência interessante, mas curiosamente apresentada como extraordinária descoberta.

Os "Archives of General Psychiatry" acabam de publicar um artigo, resultado de uma pesquisa do dr. Jeffrey Schwartz, da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Ele comprovou que terapias não químicas -comportamentais ou cognitivas- alteram a bioquímica do cérebro. Escolheu um sintoma obsessivo compulsivo (tipo verificar dez vezes se o gás está fechado), para o qual os psiquiatras americanos prescrevem habitualmente Prozac, obtendo sucesso em 70% dos casos.

Mostrou, primeiro, que o sintoma é um falha do núcleo caudato do cérebro, o qual tem a função (digamos assim) de endereçar ou não a atenção do córtex orbital para novas coisas. Conseqüência: a gente fica parado no mesmo pensamento.

Ele submeteu então 18 pacientes a uma terapia meio comportamental, meio cognitiva: tratava-se, ao surgir o pensamento obsessivo, de identificá-lo explicitamente como alteração química e de se concentrar sobre alguma outra atividade construtiva.

Depois de dois ou três meses de terapia, 12 dos 18 pacientes se sentiam muito menos obcecados por seus pensamentos compulsivos e -sobretudo- mostravam uma imagem "scanner" do cérebro, onde claramente a atividade do núcleo caudato era modificada, como o seria por uma intervenção química. A experiência mostra que efeitos descritivamente comparáveis de ações tão diferentes quanto uma intervenção química e uma técnica verbal seriam equivalentes do ponto de vista cerebral. É alguma coisa. Mas não deveria ser uma grande surpresa para quem não acredita que o espírito tenha vida distinta do cérebro.

Poderíamos perguntar: será que o dr. Schwartz nunca ficou preso em um engarrafamento, ou foi cortado por um motorista, que ainda expressou dúvidas sobre a moralidade de sua mãe? E nunca lhe passou pela cabeça que as alterações produzidas no seu estado de espírito por tais eventos eram alterações químicas de seu cérebro? Isto não era suficiente para pensar que a conduta e a palavra influenciam o funcionamento cerebral?

O título do artigo da "Newsweek" -"A mente pode curar o cérebro"- deixa pensar que antes da descoberta do dr. Schwartz todos estivessem acreditando na dualidade do corpo e do espírito, ou da alma. E deve ser assim. Por isto, aliás, a biopsiquiatria pôde anunciar tão triunfalmente há anos a banalidade segundo a qual nossa vida psíquica corresponde a estados químicos de nosso cérebro. Por isto, também, agora pode-se anunciar como descoberta que a intervenção química não é o único jeito de alterar nossa vida psíquica.

Somos vítimas de uma contradição cultural. Prezamos a autonomia individual ao ponto de acreditarmos na alma separado do corpo, irredutível à miséria da anatomia. Mas, por outro lado, esta alma tão autônoma é evidentemente desejosa de descansar um pouco, encontrando certezas. Ela acaba assim sonhando com sua própria naturalização, ou seja, com sua redução a uma função biológica. Imaginem que alívio: poder descrever a felicidade e realizá-la em termos de equilíbrio químico, escolher parceiros perfeitos via DNA...

De fato, se o funcionamento psíquico pode ser descrito em termos de química cerebral, seu equilíbrio pode ser alterado quimicamente. Mas é também evidente que a química cerebral é ligada a nossa exposição a um ambiente infinitamente complexo de relações (atuais e memorizadas) com o mundo e sobretudo com os outros com quem cruzamos ou vivemos. Esta relação complexa regula nossas serotoninas e outras.

Para agir rapidamente e sem se questionar muito, é possível esquecer esta complexidade toda e optar por um Prozac bem feito, esperando que venha a reduzir química e diretamente as alterações produzidas pelos avatares de nossas vidas.

Risco: a complexidade esquecida pode se vingar, nos mandando colocar fogo em algum metrô, pois ela é uma variável singular que se interpõe entre a intervenção química e as mudanças de humor produzidas em cada um.

Mas, se o estado de nossa química é um efeito das coisas que nos acontecem, que nos são ditas, que dizemos e pensamos, então é também possível corrigir este estado pelo mesmo caminho que o produziu, ou seja, pela via da palavra e dos atos.

Nesse caso, pode-se escolher entre intervenções mais limitadas, como na terapia do dr. Schwartz, que almejam produzir via palavras uma mudança circunscrita comparável àquela produzida pelo Prozac. Ou então caminhos mais indiretos, como nas psicoterapias todas, onde se trata de obter também o mesmo resultado, mas alterando globalmente o equilíbrio psíquico (e portanto químico) no qual o sintoma está incluído.

Aqui também há riscos: dar sentido diferente, fazer lutos, reconstruir uma história a partir do que nos aconteceu é um processo complicado e que introduz variáveis novas em nossa vida psíquica -por exemplo, as palavras de um terapeuta. Portanto, é um processo aberto, que não pode antever seu fim.

No entanto, graças ao pirômano de Nova York e ao dr. Schwartz, ficaram plantados na mesa dois ovos de Colombo, que talvez acalmem um pouco a chatice das discussões entre freudianos e antifreudianos, psicocoisas e biocoisas:

1. Os efeitos das intervenções químicas em nossa vida psíquica são rápidos, mas talvez tão incertos quanto os efeitos produzidos pelas palavras e os atos de um psicoterapeuta;

2. De qualquer forma, atos e palavras modificam nosso cérebro.

Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 17 de março de 1996, página 3.