terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Hipocondria de resultados

Revista médica acusa indústria farmacêutica de fabricar moléstias para vender remédio
Veículo: Folha de São Paulo
Seção: Mais!
Data: 23/04/2006
Estado: SP

A predileção incomum do público por soluções simples para problemas complexos, em especial os de saúde, é um segredo de polichinelo explorado há milênios pelos vendedores de ungüentos, garrafadas e emplastros milagrosos. Basta visitar o mercado Ver-o-Peso, em Belém do Pará, ou ouvir programas populares de rádio AM, para verificar que a tradição continua forte. Bem mais lucrativo que inventar remédios, porém, é fabricar doenças novas, com critérios de diagnóstico amplos e algum recém-desenvolvido medicamento de uso contínuo. Dá para ganhar bilhões com pílulas como Prozac ou Viagra, os símbolos de uma época em que estar doente é pop.
A receptividade e o entusiasmo dos consumidores contemporâneos para com as novas moléstias parecem inesgotáveis. A boa e velha impotência masculina foi repaginada como disfunção erétil e até ganhou uma companheira, a disfunção sexual feminina. Todos ficaram momentaneamente convencidos de que seriam felizes para sempre, sob as bênçãos do sildenafil. A única ameaça viria talvez do transtorno disfórico pré-menstrual (a antiga TPM), mas contra ele se ergueu uma barragem de inibidores seletivos de recaptação de serotonina, as drogas da família do Prozac: fluoxetina, sertralina, paroxetina, fluvoxamina... É só escolher.
Outra ameaça para a paz no leito, não só a conjugal, ganhou o nome quase humorístico de SPI (síndrome das pernas inquietas). Milhões de pessoas descobriram que sua insônia vinha dos membros inferiores, e não da cabeça. Melhor ainda, que ela poderia ser tratada com um comprimido de ropinirol. Maravilha.
Nem a escola escapou do marketing que mantém as empresas farmacêuticas como um dos ramos mais rentáveis da indústria, ainda que sua capacidade de inovação -medida pelo número de novos princípios ativos aprovados para comercialização- esteja em queda contínua. Para a epidemia de TDAH (transtorno de déficit de atenção e hiperatividade) existe, felizmente, o metilfenidato, que professores, enfermeiros, médicos e até pais se alegram em ministrar a uma geração incontrolável. A nova moda, agora, é diagnosticar guris de até 2 anos de idade com transtorno bipolar (ex-PMD, psicose maníaco-depressiva, antes uma prerrogativa dos adultos) e tratá-los na base dos "estabilizadores de humor".
O dossiê exagera na demoni-zação da indústria farmacêu-tica, que não exerce um papel tão proe-minente assim na exageração de outras panacéias biomédicas
Essa tendência do mercado farmacológico para a massificação de moléstias preocupa um número cada vez maior de médicos e até de jornalistas, em geral coadjuvantes empenhados desse processo. Ele já foi chamado de medicalização da vida, mas hoje é conhecido de maneira mais pejorativa como "disease-mongering" (algo como "apregoar doenças", aqui traduzido por "fabricação de doenças"). Há duas semanas, ganhou mais visibilidade com uma coleção de ensaios publicada no periódico científico de acesso aberto "PloS Medicine" (medicine.plosjournals.org), três dezenas de páginas de ataque frontal às táticas de vendas das empresas farmacêuticas e aos médicos e jornalistas que se prestam a implementá-las.
O termo "disease-monger" foi criado em 1992 por Lynn Payer, relembra Leonore Tiefer, da Universidade de Nova York, em seu artigo para o dossiê da "PloS Medicine". Payer também listou os dez mandamentos para a fabricação bem-sucedida de uma nova doença:
1. Tomar uma função normal e insinuar que há algo de errado com ela e que precisa ser tratada;
2. Encontrar sofrimento onde ele não necessariamente existe;
3. Definir uma parcela tão grande quanto possível da população afetada pela "doença";
4. Definir a condição como uma moléstia de deficiência ou como um desequilíbrio hormonal;
5. Encontrar os médicos certos;
6. Enquadrar as questões de maneira muito particular;
7. Ser seletivo no uso de estatísticas para exagerar os benefícios do tratamento disponibilizado;
8. Eleger os objetivos errados;
9. Promover a tecnologia como magia sem riscos;
10. Tomar um sintoma comum, que possa significar qualquer coisa, e fazê-lo parecer um sinal de alguma doença séria.
O ponto forte do dossiê da "PloS Medicine", editado pelos australianos Ray Moynihan (jornalista, autor do livro "Selling Sickness", ou "Vendendo Doença") e David Henry (farmacologista clínico, fundador da página de internet Media Doctor, www.mediadoctor.org.au), é não poupar a imprensa como co-autora dessa obra de falsificação em massa. O ponto fraco é algum excesso na demonização da indústria farmacêutica, que não exerce um papel tão proeminente assim na exageração de outras panacéias biomédicas, como a genômica e a pesquisa com células-tronco.
A "big pharma", afinal, só vende o que nos dispomos a comprar, como lembrou Ben Goldacre, médico e autor do popular blog britânico Bad Science (má ciência): "Somos todos participantes desse jogo. Fingir que a medicalização é algo imposto a nós -por malvadas e poderosas influências externas- só enaltece um sentimento perigoso de passividade", ressaltou Goldacre.


ABP . Associação Brasileira de Psiquiatria
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